29/06/06

Livros e leituras

Este livro de Mia Couto inicia um tipo de romance diferente dos anteriores. Tem a curiosidade de se passar em duas épocas distintas na actualidade e no século XVI. Não são porém duas narrativas independentes. Quando iniciei a leitura senti um certo receio de não vir a gostar dos livros. A ficção de Mia Couto tem-me sempre fascinado mas tendo lido uma entrevista em que o próprio autor alertava para o carácter diferente desta sua última obra, fiquei apreensiva. Quando iniciei a leitura da obra fiquei sem dúvidas e rapidamente “galopei” até ao final. O autor pode não “inventar”tantas palavras como nos outros livros. O que está lá sempre é o imaginário africano, a simplicidade autêntica do vocabulário, a escrita do sentimento e da imaginação.
“O escravo pediu para que, caso adoecesse gravemente, o deixassem abraçar Nossa Senhora antes de ser lançado ao mar.
- Tens medo de morrer?
- Não é morrer que me dói. O que me dá tristeza é ficar morto.” (pag. 66)

“ A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa.” ( pag.77)

“- Passou-se alguma coisa com a mãe?
- Não, é comigo.
- E o que se passa consigo?
- Sabe como eu me chamo nestes ultimamentes?
……………………………………………………….
- Jesustino! Agora chamo-me Jesustino.
No ano passado, ele tinha sido Ildefonso. Já fora Agnelo, Salvador. E muitos, muitos outros. Desde que casara, mudava de nome em cada aniversário. O argumento era que, assim, em trânsito nominal, acabaria vivendo mais tempo.”(pag.83)

“A vida são golpes, costuras e pontes.”(pag.87)

“- Lembra-se do tempo em que eu passava tardes e tardes costurando?
- Lembro-me mãe. Eram tantas filhas, tantas roupas?
- A maior parte das vezes, eu só fingia que costurava.
- Fingia? Fingia para quê?
Os homens não gostam que as mulheres pensem em silêncio. Nascem-lhes suspeitas.
- Enquanto ia costurando, o seu pai não imaginava que eu estava pensando. Minha cabeça viajava por todo o lado.
Nesses escassos momentos, Constança era mulher sem ter que pedir licença, existindo sem ter que pedir perdão.” (pag.92)

“ Os ricos enriquecem, os pobres empobrecem.
E os outros, os remediados, vão ficando sem remédio.”
( O Barbeiro de Vila Longe) (pag.211)

“De regresso à Vila, abriu a barbearia. Todos se espantaram: como é que um homem tão letrado aceitava uma ocupação tão modesta? Só depois se soube: a barbearia é um lugar em que se reduz o cabelo e crescem as línguas. É um bazar de conversas, um mercado de mexericos. ( pag.213)

“A saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.” (pag.223)

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